Olhei no espelho, Ícaro me encarou:
“Cuidado, não voa tão perto do sol
Eles num gueta te ver livre, imagina te ver rei”
O abutre quer te ver de algema pra dizer:
“Ó, num falei?” (Ismália, canção de Emicida)
*O nome Ismália significa em grego “desejo de amor”
E a estrutura racista se reafirma a cada dia vociferando seu ódio de forma destemida, afrontosa, imperturbada…
Enquanto isso o jogo segue. O jogo? Segue.
Segue porque é sobretudo o lucro
Segue porque é sobretudo o poder
Segue porque é sobretudo entretenimento
Segue porque é sobre, desde sempre, o valor utilitário do corpo que produz, neste caso o corpo de atleta que assegura ao investidor lucro e poder e ao comprador, entretenimento. Essa engrenagem futebolística/esportiva é sobre compra e venda de corpos úteis. O atleta deve entregar a quem paga pelos seus serviços uma performance altamente rentável atlética e financeiramente e ao expectador, um espetáculo excitante.
Compra e venda de corpos. Isso não é de hoje, não é mesmo? Remete a algum passado não tão distante da história da humanidade? Pois é, as coisas seguem como sempre foram encobertas por uma nova roupagem.
Viny incomoda tanto porque é excelente no que faz. Dentro dessa estrutura colonial um corpo negro não foi feito para brilhar escancaradamente, apenas para servir e entreter a casa grande. Mas Viny subverte essa lógica entregando ao mundo não somente um fazer futebol alegre e ousado, mas sobretudo um modo de ser consciente de seu legado enquanto homem negro público e cidadão. Ele inspira seus iguais e agindo assim se torna potencialmente ameaçador a quem o deseja ocupando o lugar de mansidão e subserviência cega.
No fundo, ele sabe que a maioria das manifestações de repúdio em decorrência dos atos de racismo fazem parte da hipocrisia cotidiana da estrutura colonial predominante. O dia em que os jogadores, técnicos, árbitros, dirigentes abandonarem o campo após atos como os vividos por Vini Jr e tantos outros aí a gente começa a acreditar nas manifestações de abominação nas redes sociais. Digo mais, não somente abandonarem o campo, mas principalmente abrirem espaços para negros e negras ocuparem as instituições em postos de chefia e comando. Faixas contra o racismo são insuficientes quando os negros e negras nos clubes e instituições esportivas não recebem a devida valorização. As hashtags não o comovem. Nem a mim, Viny. Sabemos que eles não querem abrir mão dos privilégios, que nos querem mansos e obedientes. Atletas que se posicionam como você não são bem-vistos nos clubes. Que você, querido, receba muito amor e apoio do seu quilombo. Tenho absoluta certeza que sabe reconhecer a sua verdadeira rede de apoio.
Aqui do lugar de psicóloga negra manifesto a minha inconformidade em sustentar uma prática profissional que se alinhe a essa lógica que desumaniza os atores do contexto esportivo em nome da performance-espetáculo. Deixo como sugestão de leitura um estudo realizado pelo Márcio Antonio Tralci Filho, intitulado “Atleta negro psicólogo branco: racialização e esporte na visão de profissionais de psicologia” para que pensemos numa psicologia efetivamente antirracista. No entanto, no estudo Tralci evidencia, não surpreendentemente, que existem no mínimo, em resumo, dois perfis de psicólogos no trato de casos como os vividos pelo Vinícius Junior. Por um lado, há profissionais que orientam os atletas a seguirem adiante na competição ignorando os estímulos que não se relacionam com a performance (vaias e ofensas racistas, por exemplo) e por outro os que acolhem a dor e sofrimento e relegam a performance a segundo plano. Sugiro que os estudantes e profissionais de psicologia que seguem este perfil leiam e reflitam sobre que posicionamentos são parte do seu fazer psicológico.
Enquanto isso, o jogo segue…
Daniele Muniz de Lima Granja
Mestre em Psicologia Social
Especialista em Psicologia do Esporte
Psicoterapeuta Cognitivo-Comportamental e Terapeuta do Esquema